15.6.09
Júlia e os anos 50
– "Alô."
– "Júlia! Tenho algo pra te mostrar. Posso passar aí?"
– "Agora, Antonio?"
– "Agora. Você precisa ver. Quer dizer, ouvir. É incrível. Quer dizer, eu acho incrível. O pessoal disse que é de arromba. A Nara, o Ronaldo. Até o João! Já te apresentei o João? Ele é novo. É o ouro. Você precisa conhecê-lo. E a Tereza. A Tereza chorou. Toquei por telefone, ela está nos Estados Unidos. Mas, Júlia, só ouvindo da sua boca é que vou saber. É uma coisa nova. Uma bossa. Uma uva. Você vai amar."
Júlia riu e interrompeu Antonio.
– "Vem logo".
Em dez minutos Antonio batia na porta da Júlia. Ele, o violão e o chapéu.
– Entra logo – disse Júlia, segurando a caneca do James Dean. – Que bossa é essa?
– Calma. Você já vai ouvir. Desliga essa droga. Você também comprou uma, hein? Em todo lugar que vou tem uma dessas.
Júlia balançou a cabeça.
– Eu ganhei do meu pai. Você não tem um televisor ainda, Antonio?
– Não dou pelota.
– Estava assistindo a Maysa. Linda, não? Pena que em preto e branco os olhos se apagam.
Pararam um instante. Um ao lado do outro. Maysa cantando. Antonio apoiado no violão. Júlia colocou o chapéu dele na sua cabeça. Provou o café. Frio.
– Essa dor-de-cotovelo do inferno.
– Para, Antonio. É lindo.
– Mas isso vai acabar, coração
– Ah, vai ,é?
– Vai. Senta aí. Desliga o televisor. Vou mostrar uma coisa pra você. Tem um uisquinho?
– E como eu seria sua amiga se não tivesse?
– Não se preocupa. Enquanto você usar esse lenço de bolinha no pescoço eu vou te amar. Mas presta muita atenção porque daqui a pouco é isto que vai aparecer naquela telinha. E com a Elizeth. Ela vai colocar.
– É sério? – Júlia perguntou.
Serviu o uísque dele. Pingou um gole no café. Provou. Frio. Ele jogou os cabelos pra trás, rindo alto.
– Júlia, eu vou te mostrar o que vai causar o maior bafafá nesta cidade. Melhor: neste país.
Júlia ficou séria. Largou-se no récamier.
– Mostra logo.
Antonio sentou-se no tapete redondo cor-de-rosa. Acomodou o violão no colo. Ensaiou uns acordes. Olhou nos olhos de Júlia. Começou.
– /Vai minha tristeza/ e diz a ela que /sem ela não pode ser/...
Júlia endireitou-se no récamier.
– /Diz-lhe/ numa prece/ que ela regresse/ porque eu não posso mais sofrer.
Ele parou um instante. Sorriu. Degustou um gole.
– /Chega de saudade/ a realidade é que/ sem ela não há paz/ não há beleza/ é só tristeza/ e a melancolia que/ não sai de mim/ não sai de mim/ não sai/...
Júlia abriu a boca. Fechou. Aquela voz do Antonio. Aquele jeito de tocar do Antonio. Aquele ritmo. Aquele samba? Aquela delícia.
– /Mas se ela voltar/ se ela voltar/ que coisa linda/ que coisa louca/ pois há menos peixinhos a nadar no mar/ do que os beijinhos que eu darei na sua boca/...
Atirou um beijinho para a Júlia. Ela nem piscou.
– /Dentro dos meus braços/ os abraços hão de ser/ milhões de abraços/ apertado assim/ colado assim/ calado assim/ abraços e beijinhos/ e carinhos sem ter fim/ Que é pra acabar com esse negócio de você/ viver sem mim.
Pausa. Gole do uísque.
– /Não quero mais esse negócio de você/ longe de mim.
Dois tapinhas no violão. Fim. Antonio virou o copo. Sorriu.
Júlia colocou as mãos no peito. No rosto. No peito. Tentou segurar o coração.
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não se nasce mulher, torna-se mulher [simone de beauvoir]
Não sei fazer elogios sem analisar extenuantemente a produção... deve ser um tique acadêmico que eu acho que tenho. Mas vou tentar me evitar assim: está simplesmente Ó-TI-MO. Teu texto me fez lembrar do Chega de Saudade do Rui Castro. Parece que muitas histórias verídicas ele teve que preencher com ficção para não deixar vazios, para dar verossimilhança, talvez. Será que um dia teremos as histórias da bossa nova contadas pelo ponto de vista da sensível heroína, a Júlia? Eu seria o primeiro a querer ler. ;-]
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