27.3.08

everything is gonna change my world

Muitas coisas me modificam. Eu sei, muitas coisas modificam muitas pessoas. Mas obviamente algumas coisas modificam cada pessoa. Músicas modificam pessoas. Nem todas as músicas modificam todas as pessoas. Há músicas que me modificam muito. Há músicas que me modificam em determinados momentos e para sempre.

Hoje eu viajei até Viamão ouvindo músicas. Entre elas, O Caderno, do Toquinho. Sabe qual é?

Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o be-a-bá.
Em todos os desenhos
Coloridos vou estar
A casa, a montanha
Duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel...


Ia tudo muito bem, aquela nostalgia clássica de quem foi criança nos anos 80, relembrando a capa do disquinho e a sensação de ouvir aquela voz gostosa falando alguma coisa sobre um tal de caderninho, que bem parecia com os meus caderninhos, mas eu não tinha consciência ainda para saber que eram exatamente os meus caderninhos.
Caderninhos que acompanharam a minha vida inteira, repletos de anotações coloridas, de desabafos escuros, de frases copiadas, de poesias inventadas, de segredos reinventados em códigos que até hoje eu sei.

Que eu nunca esquecerei.

Mas foi então que o Toquinho sussurrou com sua voz doce o trecho mais cruel que provavelmente ele já sussurrou na vida. E me doeu perceber que ele sempre sussurrara tal maldade em meus ouvidos e eu escutava, ingênua e crédula, julgando serem apenas palavras bobas de uma canção lúdica de criança, mas era e sempre será uma centelha de vida, em verdade, era o anúncio, era o aviso, era, de certa forma, o meu veredicto, que só eu ainda não conhecia e que só o Toquinho tinha coragem de pronunciar.

Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo
Se você quiser
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá
Num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel...

Rasguei muitos papéis sem lembrar que eles estavam destinados a isso. Sim, os cadernos, os meus caderninhos, sempre foram o meu abrigo, a minha forma de escapar e de entender o carrossel que me engolia. Eu ia me modificando e os cadernos iam se modificando, os antigos modificavam os novos, eu ia modificando os cadernos e é óbvio que os cadernos, folha a folha, linha a linha, iam modificando a mim.

Chorei tanto hoje, no ônibus, escutando novamente aquela voz sussurrada, aquele prenúncio da futura mulher, que não é mais um futuro, que sou eu, feita de sussurros de carrossel de cadernos e de milhões de folhas rabiscadas rasgadas inteiras molhadas publicadas queridas queridas queridas.

A vida não é um brinquedo inocente. A vida nos deixa tontos. A vida é o que o Toquinho me mostrou que seria e eu fico feliz de não ter entendido antes. Ele nem queria que eu entendesse. Ele queria apenas acariciar o que eu era. Ele queria, apenas, louvar o que eu seria, antes de todo mundo. Ele queria, quem sabe, como eu também quero, que um dia alguém se soubesse modificado por suas palavras.

E os meus cadernos seguem comigo. Essa música desenvolveu em mim um absurdo colecionismo. Ele me pedia para não esquecê-lo em um canto qualquer e eu jamais poderia mesmo fazê-lo. Ainda tenho os meus cadernos. Fico angustiada cada vez que penso nas traças e no mofo que podem estar os consumindo. Não tenho coragem de abri-los. Não quero me ver corroída. Não quero me ter esquecida. Posso fazer terapia para perder o medo insuportável da morte, para aprender a conviver com ele, mas não posso fazer terapia para esquecer o que sou. Meus cadernos são eu. Desculpe. Mas eles são eu.

E eu sinceramente acredito que um dia as pequenas mãozinhas dos meus filhos irão folheá-los. E lê-los irá modificá-los. E vê-los ler fará de mim, então, diferente.

6 comentários:

  1. Essa foi a mais bonita que já escreveste. POETRY AND CATHARSIS

    lots of kisses

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  2. belo, riquíssimo, brilhante.(os meus primeiros textos nunca foram guardados, as folhas que os acolhiam se perderam, hoje seria reciclados e guardo apenas dentro de mim e das minhas retinas o que vivi, na infância e logo depois). e a canção que mais me fazia sonhar, quando 68 explodia e eu tentava entender, era uma balada chamada Words, dos Bee Gees. Aqueles papéis foram parte de mim, com certeza, como estas palavras. belíssimo, dos melhores que li neste universo dos blogs. grande abraço.

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  3. Bah camila.
    Bem, na verdade toda a mente criativa e auto "regulativa", edita papéisinhos todos os dias mesmo que em pensamento, e a gente vai se prostituindo dia-a-dia, reeditando conceitos sobre um mundo que antes era "aquilo" agora é "isso", mutante mesmo contra a vontade, não è? Sabe, não tenha medo se algo te puxa pra abrir "a Pandora", abra, osfantasmas já não podem nos assustar mais, somos mais cascudos, e como te conheço (um pouco pessoalmente), acredito que és forte o suficiente pra agüentar o "Tirão" do fluxo das nossas ansiedades, o futuro é agora, amenininha ainda é menina, mas no futuro que respiras, sabemos que só a verdade é que liberta, e é nos nossos rascunhos que encontramos a perfeição. Portanto não deixe derascunhar, para sempre haver futuro.

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  4. Ah, minha querida, que doce e terna leitura! É de quem é feliz escrever assim e ter esse mesmo carinho pelo passado e pelo futuro. Gostei demais de te ler neste post. Te desejo uma boa semana. beijo

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  5. Camila:
    Bacana a tua crônica.
    Que bom, descobriste a inimaginável força, a magia de uma canção.
    Deixa às traças, se as traças o papel consomem. Não consumirão, é certo, a tua história e conquistas, os sentimentos, as ilusões, as decepções e esperanças, pois tudo isso foi-se incorporando fundamente à tua vida.
    Podem ficar à sua sorte os cadernos, pois os sinais e vestígios ficados nas suas amarelecidas páginas talvez de "outra pessoa" digam.
    Abri-los, quem sabe, nem seja questão de coragem, mas de escolha.

    Almiro

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não se nasce mulher, torna-se mulher [simone de beauvoir]