segunda-feira, 29 de maio de 2006
A RECRIAÇÃO DO MUNDO
Para o amor que recriou meu mundo,
Minha boca e minha maçã, Caio.
E quando a última estrela se apagou no céu e fez do Universo uma mancha preta sem início nem fim nem centro, ela assustou-se. O nada a engolia e mesmo não sendo nada, era alguma coisa, pois era o primórdio e o derradeiro, o vazio e o absoluto.
Suspirou profundamente. Tanto que o nada tremeu. O seu suspiro, que já fora quase nada em meio ao tumulto do tudo, agora trovejava e foi um tremor tão forte que fez o nada sacudir.
Sentia medo, sentia frio. O nada era assim, desagradável, pouco confortável, nada, nada amistoso. Estar no nada e sozinha era a última coisa que queria, a última coisa que esperava.
Estar no nada diante de uma vida para viver era o nada dentro do nada e não havia ninguém para se voltar em desespero.
Deitou no nada em que o tudo se transformou e não precisou fechar os olhos porque mesmo mantendo os olhos bem abertos o que via era o nada puro e não aquele que costumava manipular com o selar de suas pálpebras.
Experimentou tocar seu corpo. Já não tinha certeza de sua existência, já não tinha certeza de seu ser. O mundo se transformara em nada e quem sabe não era ela mesma uma espécie de nada, uma espécie que poderia tocar a si mesma.
Poderia mesmo. Tocou os cabelos, nariz e seios. Tocou barriga, pernas e dedos dos pés. Tocou dentro. Tocou a pele sobre o coração e sentiu-o bater.
Escutou-o bater. Forte. Alto. Mais forte e mais alto que o nada.
Seu coração não era o nada, mas bem que poderia ser. Já que o tudo foi engolido, por que não o seu coração? De que lhe adiantava conservar um coração vivo e pulsante no meio de todo aquele imenso nada? Abraçou os joelhos com os braços e apertou-os bem forte. Enfiou, de algum jeito, a cabeça entre eles, tão enfiadinha a ponto de praticamente sucumbir. Sentiu seu hálito esquentando o peito. Ar quente e úmido. Encolheu-se mais e mais até quase sumir. Seus ossos doíam, mas ela não parava, queria consumir-se, desintegrar-se, diluir-se em nada e perder a consciência, pois a consciência do nada é que faz o nada existir.
Permaneceu assim por muito tempo. O tempo, no nada, dobra de tempo. E não passa nunca. Como manter a noção do tempo diante do nada? Eis que o tempo também se torna nada.
Mas ocorre que o nada, apesar de nada, é vivo, existe. Guarda em suas entranhas um resquício de algo inexplicável, algo que inexplicavelmente pode pulsar. Ela estranhou aquele pulsar, pois não era o pulsar descontrolado que soava em seu peito e que não a deixava em momento algum do tempo se desligar do nada. Era um pulsar suave e gostoso, um abrir e fechar, um mexer cadenciado e úmido, que só no silêncio absoluto podia ser percebido, que fez com que ela se movesse um pouco, bem pouco, apenas o suficiente para espiar um pedacinho do nada e ver o que diabos estava acontecendo por ali.
Só que o seu pouquinho foi tão pouquinho que tudo o que ela conseguiu enxergar foi uma espécie de boca (boca?). Uma boca bem vermelha, tão vermelha que se destacava no meio do nada (boca no meio do nada?). E era carnuda. Deliciosamente carnuda. Movia-se num ritmo macio que dava gosto de ver e de tanto gosto ela moveu-se mais um pouquinho para tentar enxergar ainda melhor. Abriu bem os dois olhos e esticou o pescoço. A boca parecia que dizia algo. E ela queria ouvir. Prestou atenção. A boca parecia dizer Camila, mas só parecia, não dava pra ter certeza, estando assim, tão longe.
Camila então espichou um braço. Mexeu os dedos, um por um. Estavam tão dormentes, seu corpo todo estava tão dormente, que ela quase desistiu de continuar. Mas sua curiosidade foi maior que a dormência de todos os seus outros sentidos e ela não resistiu. Respirou fundo e mexeu o outro braço. Apoiou-se e ficou olhando praquela boca vermelha, linda, que parecia dizer seu nome sem parar. Era mesmo só uma boca, uma boca vermelha no meio do nada escuro, e era tão bom olhar praquela boca que ficou pensando se era bom também beijar.
E Camila não agüentou muito tempo. E o tempo agora misteriosamente corria no mesmo ritmo do tresloucado bater do seu coração.
(TUM TUM TUM Chegou pertinho da boca. TUM TUM TUM Olhou fixamente pra ela. TUM TUM TUM Sim, ela dizia seu nome. TUM TUM TUM Baixinho, bem baixinho. TUM TUM TUM Um sussurrar sensual. TUM TUM TUM Que boca mais gostosa. TUM TUM TUM Que vontade de beijar.)
Camila, num impulso, empurrada por aquele bater alucinado dentro de si que já não tinha mais controle; intimada por aquele chamar incessante de seu nome, "Camila!", TOCOU a boca. E ela era mesmo tão deliciosa quanto parecia. Tocou com um dedo, com dois, com todos. Não agüentou, não pode controlar, BEIJOU. Mordeu. Lambeu. Chupou. Beijou de novo. E de novo. Um beijar sem fim. Um beijar eterno. Um beijar sem vontade de parar de tão bom que estava beijar. E Camila beijou tanto e tão profundamente que quando abriu um olho, só um, deslumbrou-se. Havia um rosto naquela boca, com olhos que olhavam diretamente na sua alma e um sorriso que tocava diretamente a sua alma, pois, de repente, tinha alma.
Camila assustou-se, deu um passo para trás. Cambaleou, lívida e apaixonada. Seu corpo todo se arrepiou, se eletrizou, pediu de volta aquele outro corpo, aquele calor, aquela coisa que não dava pra entender, mas que era boa, muito boa, que era algo além do nada, que invadia o nada, que enchia o nada de tudo, que era o tudo em forma de homem, um único homem, o homem da sua vida.
Pulou de volta praquele beijo, praquele abraço, praquele cheiro, praquela pele que era feita da sua pele, continuação sua, pedaço dela mesma que em algum momento lhe foi tirado, mas que agora voltava definitivamente para si, porque o lugar dele era mesmo ali e qualquer outro seria novamente o nada.
E assim EU e TU, ao contrário da célula que nasce e se desdobra em várias até criar uma forma inteira, que se multiplica sem parar por todos os espaços que houver ao redor; nos fundimos e nos tornamos UM, apenas um, sem começo nem fim, sem saber qual é qual, ocupando um único lugar no espaço (sim, é possível), matéria pulsante de vida, a essência inicial que torna o existir possível, o sopro: NÓS.
O NÓS que recriou a luz e rasgou o escuro, que recriou o verde que cobriu o chão, que recriou o azul que inundou os vãos, que recriou a Natureza toda que rapidamente renascia daquela força, daquela vida, daquele AMOR, daquele beijar eterno que não acabava porque simplesmente não conhecia motivo algum para acabar. (E essa é a história da REcriação do mundo, pois a da criação já estão todos carecas de conhecer, e de delícias, naquela, só mesmo a maçã).
FIM
segunda-feira, 15 de maio de 2006
O DIA D
Fazer aniversário é um misto de sentimentos. Um tanto de dor e delícia, outro tanto de desilusão e esperança. A vontade de comemorar o ano que começa é imensa, mas a sensação de perda pelo que termina é inevitável. Porque o tempo não volta. O tempo passa sem nunca, nunquinha parar de passar e quem aproveitou, aproveitou. Quem não aproveitou...
Mas o que é aproveitar o tempo?
Não sei. Ou melhor: sei, para mim. Para os outros... Ora, cada um sabe do seu tempo. Aproveitar o tempo, para mim, é deitar no sofá enrolada no edredom vendo besteira na TV. É tomar um banho interminável enquanto penso na roupa que irei colocar. É deitar no chão do quarto ouvindo música e pensar em cada letra como se fosse o tema da minha vida. É escrever cartas enormes sem destinatário. É ler poesias em voz alta. É me imaginar heroína de um romance. É enumerar gastos e aquisições para quando ficar rica. É fechar os olhos e sonhar com os carinhos do meu namorado. É abrir os olhos e fazer carinhos no meu namorado. É escrever livros e rabiscos. É desenhar, pintar, recortar. É tirar tudo do armário e reorganizar. É fazer um bolo de chocolate com muita cobertura. É conversar com o meu cachorro.
Mas aproveitar o tempo, para mim, também é fazer coisas grandes. Estágio, TCC, chimarrão com os amigos. Trabalho, projetos, abraço na família. Planos, sonhos, declarações de amor para o meu amor.
Isso tudo eu celebro no dia 14 de maio. Todos os anos. Tudo de bom que acontece na minha vida. Tudo de bom que está sempre acontecendo na minha vida. Tudo de bom que se renova a cada ano e que ainda por cima cresce e se torna melhor e mais forte. O amor que me cerca, a vida que me invade, a força que me levanta a cada dia entre um 14 de maio e outro.
E o que passou, passou, não volta mais. Todo dia 14 de maio eu penso também no que faltou. No que não fiz. No que deveria ter feito. No que jamais deveria ter acontecido. Todo dia 14 de maio penso em cada minuto que perdi pensando na morte. E quantos minutos se foram aí! Todo dia 14 de maio penso em tudo que fiquei parada reclamando e deixei de ir atrás. Todo dia 14 de maio penso no turbilhão de sensações que me desnorteiam e não consigo colocar no lugar. Sensação de perda, de tristeza, de impotência, de frustração. Sensação de medo pelo futuro que pode nem existir.
Pensando bem, tudo isso acontece também no dia 14 de maio. Porque isso tudo sou eu, diariamente eu. E nessa data do ano, em especial, fico ainda mais eu, ainda mais embriagada de mim. Fico de porre de mim. Para o bem e para o mal. Para o que der e vier. Canto Camila é uma boa companheira e sigo cambaleando até o próximo aniversário.
quarta-feira, 10 de maio de 2006
CRASH
Crash, o filme. Crash, a batida. Acho que andei provocando muito os deuses, ultimamente. Reclamando da vida, das dificuldades do estágio, das incertezas do trabalho, da carência emocional, do medo de crescer sem nunca admitir que já estou bem grandinha, dos sobressaltos do coração que não me deixam enxergar as coisas nitidamente, do inferno astral que eu não acredito, mas vivo... Enfim, reclamando, reclamando, reclamando e chorando muito entre uma reclamada e outra.
Então, crash.
Parados na sinaleira, sinal vermelho, domingo de manhã. Conversas amenas, solzinho gostoso, carinhos, preguiça por ter acordado cedo. Sem expectativas maiores do que aquele domingo, do que a semana que se estenderia até o próximo encontro. E de repente, crash. Uma caminhonete se arremessando contra o nosso carro. O barulho infernal do metal esmagado, do vidro estilhaçado, do meu grito. A traseira destruída. Uma batida de cabeça. Um desespero nunca antes experimentado.
Não me lembro de algum dia ter sentido tanto medo. Coloquei as mãos na cabeça e não queria olhar o machucado por medo do sangue, não queria abrir os olhos por medo de me descobrir morta, não queria de maneira alguma olhar para o lado e ver o Caio machucado. Eu só soube gritar: "Tu tá bem? Tu tá bem?" E ele não respondia, ele não falava, ele levou talvez um segundo eterno para me tirar do limbo em que já estava mergulhada. Crash e toda a minha vida que ainda nem vivi passou pela minha cabeça. Crash e nunca nada teve tanta importância quanto ouvir a voz do Caio. Crash e não havia mais chão seguro para eu pisar.
Em Crash, o filme, vemos que a velocidade da vida fatalmente, em algum momento, nos fará perder o controle. Alguém diz, durante a história, que nunca saberemos realmente quem somos. A vertigem do viver nos impede de conhecermos a nós mesmos. Não há tempo. Não há vontade. Não há interesse. A nossa verdade nos interessa tanto quanto os outros nos interessam: nada ou quase nada e, além do mais, sempre temos algo mais importante para fazer nesse momento. Para conhecermos a nós mesmos, só quando somos induzidos, empurrados, arremessados... Crash.
Tudo o que eu penso hoje e a cada dia desde domingo é que poderia ter sido muito pior. Tantas coisas horríveis poderiam ter acontecido! Crash e não haveria mais nada. Crash e tudo acabado no meio de uma reclamação. De uma grande e interminável reclamação.
E esta teria sido a minha vida?
Felizmente não aconteceu nada no acidente. Um pequeno galo e um enorme susto. E, é claro, uma repensada na vida. Uma boa repensada na vida. Afinal, alguém escolheu esse jeito para dizer: "Calma, Camila. As coisas não estão tão ruins assim".
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