quinta-feira, 29 de dezembro de 2005
Despedida
Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.
Cecília Meireles
Estranha guerra, estranho ano. Era necessário um fechamento para tudo o que passou. Busquei em Cecília. Só ela para traduzir meus sentimentos neste dezembro. Ano nem tão bom, nem tão ruim. Ano nem tão claro, nem tão sombrio. Estranho ano.
Sei que o calendário é invenção humana. Que uma troca de datas é só uma convenção, tudo, absolutamente tudo, dependendo dos rumos da História, poderia ter sido diferente. E por mais que as explicações místicas e científicas existam, a troca de ano é só um dia depois do outro, é só uma meia-noite, é só um despertar em uma nova manhã, no mesmo lugar, na mesma hora, na mesma vida e, ainda, debaixo da mesma pele, do mesmo rosto, do mesmo signo.
Mas, estranhamente, da mesma forma que o ano, a troca do número, a cada doze meses, me enche de uma sensação de esperança. Não sou mais a criança de tempos atrás, que comemorava, que enchia a alma de sonhos, que prometia maravilhas, que esperava retribuições. Não, eu mudei, com o passar dos anos. Hoje, seguro minha taça de champanhe às doze horas, e eu adoro champanhe, e os olhos brilham, e se enchem de água, um tanto culpa da hipnotizante bebida, eu sei, e a emoção toma conta de mim, e minhas mãos tremem, e meu sorriso titubeia, e eu costumo olhar para o céu, para os fogos, para algo além de tudo isso, algo que o ano inteiro neguei, e penso: pode ser diferente. Por que não?
Gosto desse poema que clama por solidão. 31 de dezembro é uma noite que se passa com todos que foram amados durante o ano. Queremos amigos, queremos família, queremos o amor, mas, embora todos se abracem ao soar das doze badaladas, o que iniciamos ali é mais um solitário caminho, é mais uma luta pessoal e intransferível pelo que desejamos para nós mesmos, pelo que buscamos para nossas existências, pelo que esperamos encontrar.
Cada abraço é um consolo do corpo para outro corpo, tristes estandartes que ruidosamente se despedem do estranho ano e silenciosamente anseiam pelo próximo, seja como for, e que furiosamente juram que amanhã, dia 1º de janeiro de 2006, a primeira coisa que farão é escancarar as janelas.
E nós que vamos, sem saber para onde, tomamos o Ano-Novo como um banho de sal grosso e força, não para recomeçar; para continuar.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2005
Então é Natal
e tem gente dormindo na rua, catando lixo, comendo lixo, vivendo no lixo. Tem gente roubando, matando, estuprando. Tem gente traindo, mentindo, fugindo. Tem gente guerreando. Tem gente sofrendo. Tem gente em desespero, porque não há mais saída. Tem gente doente. Tem gente morrendo.
Então é Natal
e tem gente iluminando a casa, enfeitando a casa, enchendo a casa de Natal. Tem gente trabalhando, ajudando, realizando. Tem gente beijando, abraçando, acariciando. Tem gente amando. Tem gente feliz. Tem gente batendo palmas pra vida. Tem gente com vontade. Tem gente vivendo.
Então é Natal
e pra mim tem de tudo, menos o espírito.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2005
O QUE SE PODE ASSASSINAR
25 anos do assassinato de John Lennon. Assassinar. Querer matar. Matar o quê? John? Ou o que era John? Assisti a alguns documentários a respeito da vida de John Lennon. Em um deles mostrava um hippie chegando a casa dele para cobrar algumas atitudes, para pedir algumas explicações sobre determinadas letras. O rapaz havia se lançado ao mundo em busca de respostas para as inquietações que John tanto lhe causava Lennon, com o jeito arrogante dos que não estão nem aí, respondia: hei, eu não fiz as músicas pensando em você. Eu nem sei quem você é. Eu nem sempre penso quando escrevo uma música, apenas escrevo. Minhas músicas não são a minha vida, elas não falam sobre mim. Elas não falam sobre ninguém. Seria essa uma reposta sensata?
John parecia cansado de seus fãs. John parecia cansado de garotos burgueses que largavam tudo e saíam a "riponguear" pelo mundo movidos por suas canções. John parecia não ter mais nada a ver com eles. Não se sentia responsável. Não o era nem por si mesmo, não seria por um bando de meninos perdidos. John só queria Yoko. E sabe-se lá o que Yoko queria. Lennon fez parte de algo único. Ele era um Beatle. Ninguém jamais virá a saber o que isso significa, a não ser eles mesmos. Ninguém entenderá a imensidão de ser um Beatle. Ninguém entenderá a solidão de ser um Beatle. Mesmo formando um par obcecado e suicida ao lado de Yoko Ono, ser um Beatle não se repete, não se divide, não se prova. Não se comunga nem com outro Beatle.
John Lennon foi assassinado por um maníaco, por um fã literalmente enlouquecido. Pois não era o que Lennon queria e despertava? A loucura dos fãs? Fãs que não perdiam um show? Que compravam todos e vários discos? Que arrancavam os cabelos, que gritavam, que choravam, que desmaiavam, que beijavam o chão no qual ele e os outros três pisavam?
É claro que não se pode culpar um homem por seu assassinato. Ainda mais nesse caso. Não eram mais os anos sessenta. Era 1980. Lennon estava no seu canto. Caminhava pelas ruas, tinha filhos, fazia músicas pela paz mundial, vestia-se de branco, tinha os pés descalços, imaginava. Sua sombra ainda Beatle, mas ele não. O que mais, então, o assassino queria ver morto?
Ele mesmo, talvez. E tudo o que um dia cantou, gritou, balançou. Tudo o que um dia sonhou, aspirou, fumou. Tudo o que um dia acreditou ser a verdade, a liberdade. Tudo o que um dia enxergou em Lennon; o que um dia desmoronou em Lennon, o que um dia, enfim, matou em Lennon.
No fundo, penso que todos nós o matamos ou a o menos achamos que foi justa sua morte. Qual cara como ele permanece vivo? Qual cara como ele não morre de repente, fulminantemente? Queremos ser como esses caras e, como não conseguimos, nos consolamos com suas mortes malucas e prematuras. Nos consolamos tendo pena. Nos consolamos pensando que não valia a pena ser tão genial na vida e tão imbecil com a vida. Nos consolamos com nossa mediocridade, pois ela não nos ameaça. Nos consolamos em ser nós mesmos, porque isso já nos dá tanto trabalho, imagina ser o John Lennon.
Nos consolamos, principalmente, por ter sido John, e não Paul.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2005
HOMEOPATIA DA ARTE
O que é isso que acontece no interior das pessoas? O que é isso que nos conduz, move, impele a viver feito loucos, conscientes da finitude de ser; inconscientes da ilimitude do ser? Dentro de nós, um labirinto de portas. Portas abertas e portas fechadas. Portas entreabertas e portas mal fechadas. Ao redor, o caos organizado do mundo, onde tudo se explica, tudo se encadeia, tudo se enquadra no conceito de ação-reação. Pois há ações, dentro de nós, que não correspondem a nada. Que se perdem, prendem, fundem em nossas entranhas.
O que desprende um sentimento incrustado? O que liberta um trauma arraigado? O que cura as feridas da alma? Um livro, um filme, uma música, uma pintura muda e palpável, ali, à frente de nossos olhos, expondo concretamente... Nada mais nada menos do que nós.
A arte alivia o ser. E não que seja seu objetivo. É, antes, sua conseqüência. Ao "fazer" arte, caçamos em nosso labirinto aquela coisa amorfa que não sabemos definir, que muitas vezes machuca, corrói, dói e arremessamos para fora. Não para nos livrarmos dela. Não, jamais nos livraremos dela. O que tentamos, em desespero, é enxergá-la cara a cara, ao menos uma vez. Só pra saber como ela é. Só para poder possuí-la novamente, agora com o aval do mundo.
A arte não ultrapassa o homem; o homem resiste na arte. Pois nada mais eterno que a dor solidificada.
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