7.3.08
era uma vez em porto alegre
Dá para acreditar em um passageiro incógnito que, como num filme de faroeste, levanta do fundo de um lotação, baleia mortalmente dois assaltantes, chuta os corpos para fora (um ainda semimorto) e manda o motorista prosseguir normalmente até o fim da linha?
Alguém entende?
Alguém pode me explicar?
Segundo a notícia publicada em Zero Hora, “Um homem misterioso, rápido no gatilho e com exímia pontaria conseguiu evitar a tiros aquele que seria mais um assalto a lotação em Porto Alegre.”
Sim, e a reportagem segue no mesmo tom com frases como estas: “Alto, branco e forte. Foi assim que uma jovem de 27 anos descreveu o passageiro que, em silêncio, levantou da poltrona, sacou sua arma e matou dois ladrões que atacavam o lotação.”.
Cena de filme? Espere para descobrir outras informações sobre o galã da história: “Ao entrar no lotação, ele já chamou a atenção das mulheres por sua forma física. Depois que atirou nos ladrões, virou herói - contou a jovem à polícia.”.
Sim, sim. Galã. E eu não estou exagerando. Galã à moda antiga, do estilo durão, Charles Bronson: “o atirador pegou a arma de um dos bandidos, caída no piso do veículo, e se encarregou de, aos chutes, jogar os dois ladrões para fora.”.
E é claro que um galã que se preze não pode ficar sem o seu grand finale: “Aplaudido e cumprimentado pelos cerca de 20 passageiros, ele deu a segunda e ainda mais inusitada orientação ao motorista: para que seguisse a viagem até o terminal na Lomba do Pinheiro, sem parar em posto policial ou delegacia.”
Uau. Até aqui já estaria pra lá de Hollywood, mas ainda tem a rapa do tacho, a cereja do chantilly, o toque de mestre: “O motorista seguiu até o ponto, e os passageiros foram desembarcando ao longo do trajeto, normalmente”.
Estou em estado de choque. Automaticamente, ao fim da leitura, minha mente me transportou ao lugar dos passageiros deste lotação, mais especificamente no papel da “jovem de 27 anos”, a mais entusiasta das fãs do nosso novo herói.
Será que eu aplaudiria aquele insano e improvável super-homem? Será que eu seguiria viagem naquele pequeno inferno ambulante? Será que – meu deus do céu – será que eu saltaria normalmente na minha parada, não sem antes comentar alegremente o fato com os outros companheiros de viagem e, é claro, evitar sujar os sapatos no sangue dos malfeitores ao passar pelo corredor?
Não estou criticando o comportamento da moça. Não mesmo. Eu jamais passei por uma experiência de assalto e não faço a menor idéia da espécie do desespero que eu sentiria.
Só que... Não sei explicar... Mas se eu estivesse lá, se eu fosse aquela moça, se fosse a minha realidade e não apenas uma notícia de jornal, eu estaria completamente transtornada, eu estaria triste e apavorada, eu estaria com a cabeça em pane, eu estaria escondida sob as minhas cobertas, com um medo absurdo dos três homens, dos que morreram e do que continua por aí, anônimo, obscuro, mascarado, tal qual um vingador errante, um justiceiro controvertido, um gatilho rápido e um coração frio, um Robin Hood sanguinário, um Anton Chigurh tal e qual, um protetor junto ao qual não me sinto segura ou aliviada, apenas ainda mais assustada.
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não se nasce mulher, torna-se mulher [simone de beauvoir]
ele é tão ou mais bandido que os bandidos.
ResponderExcluirO mundo ta blem-blem-blem, diria meu tio. Ja fui assaltado e ficaria muito pior se visse essa cena do que fiquei quando fui assaltado.
ResponderExcluirbjx
RF
Nunca imaginei, não apenas por esse episódio real, mas por tantos outros que há muito estão me afastando de Porto Alegre. E o pior, a nossa gradativa perda de referências sejam elas na ética, na cultura, está definitavamente sendo a razão de estarmos em adiantado estado de barbárie. Olho para todos os lados e não sei em quem acreditar. gostei muito do teu texto, da forma como foi escrito e oportuniza uma reflexão profunda sobre a vida e o nosso destino. um grande e carinhoso abraço.
ResponderExcluirFui assaltado seis vezes em Porto Alegre (eu pedi, é claro). Por mais comunista que se seja, nessas horas o sentimento de perder uma propriedade acaba te revoltando. Mesmo que no fundo você saiba que perder um bem não é algo tão desolador assim, a cultura obriga-nos à indignação. É por isso que grande parte das pessoas louva tais "heróis". Afinal, aqueles "bandidos" queriam tocar no que nos é mais sagrado, aquilo que chamamos - quase sempre sem refletir - de riqueza.
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