31.8.07
o meu au-au
Faz muito tempo que eu deveria ter escrito algo para a minha cachorrinha. O problema é que os humanos têm essa péssima mania de não valorizar as coisas quando elas estão bem. E eu sou humana, Kika, isso você já deve ter percebido com essa tua esperteza poodleniana.
E quantas vezes não fiquei matutando matutando e matutando assuntos para um post. Quantas vezes! E na maioria delas tu estavas ali, deitada no tapete, debaixo do meu nariz, com aquele teu jeitinho preguiçoso de cachorrinho mimado: só queria uma caminha quentinha e todo mundo ao redor.
Aquela tua preguiça pela manhã e aquele teu agito às noites. O teu cheira-cheira nas minhas bolsas, procurando chicletes. As tuas orelhas de pé quando o carro da mãe chegava. A tua loucura por bisnaguinha Seven Boys. A tua tremedeira na hora de ir para a pet shop. A tua volta triunfal, lavada, escovada e com fitinhas novas nas orelhinhas. O ciúme que sentias da mãe. As tuas sonecas de barrigão para cima.
Coisa mais querida o meu au-au.
Kika, tu era a nossa bolsinha de água quente no inverno. Todo mundo queria pegar um pouquinho. Todo mundo queria o teu calorzinho para esquentar o coração. Nada mais gostoso que passar a tarde no sofá vendo TV contigo. Debaixo do edredom.
Sabe, mimosa, eu lembro direitinho quando tu chegaste lá em casa: pequenininha, o pêlo todo malhado, hiperativa. Há doze anos. Eu ainda estava na escola. Morávamos em Floripa. Tu eras a nossa barriguinha verde. A Nati era criança e sonhava com um cachorrinho. E daí o pai te comprou. Há doze anos. Meu Deus, o tempo é tirano com a gente. O tempo é mesmo fatal.
O ser humano tem outra mania muito louca que é amar os bichinhos como se eles fossem gente. Tem gente que nem ama gente, só consegue amar cachorros e gatos e outros animais. Sei lá. Eu costumo amar as pessoas, mas eu confesso, Kikinha, que não tem como não te amar até mais do que a elas. Ninguém consegue ser tão de alguém como tu és da gente.
E agora está aí. Velhinha, velhinha. Toda doentinha. Um milhão de coisas ao mesmo tempo e das piores que há: coração, pulmão, diabete, cegueira. Tudo num único cachorrinho. No nosso cachorrinho. Que a gente cuidou pela vida inteira. Pela tua vida inteira. O problema todo é esse desencontro de tempos! Enquanto para ti, doze anos são uma longa jornada, para a gente... São como um piscar de olhos. Não são praticamente nada. A gente mal começou.
Não tem graça nenhuma em envelhecer. Não tem graça nenhuma em perder alguém porque está velho. O amor não está velho. Está igualzinho. A alma está igualzinha. A tua alegria quando chegamos em casa está igualzinha. O teu rabinho abana igualzinho quando te fazemos festa. Não tem nada, absolutamente nada de diferente. Só o corpo, essa porcaria com prazo de validade que todo mundo insiste em louvar, não funciona mais.
Neném, essa minha tristeza toda tem muito de egoísmo, outra mania insuportavelmente humana. É que assistir ao final da tua existência, assim, tão de perto, faz com que eu sofra por antecedência a minha própria vida. O meu próprio envelhecer. O meu próprio acabar. Porque os humanos são iguaizinhos aos cachorros, sabia? Eles vivem bem até certo ponto e, a partir dali, vão definhando, pouco a pouco, dia a dia, no começo imperceptivelmente e, depois, numa velocidade desnorteante e com uma força avassaladora. Quando nos damos conta, estamos assim, como você está agora: frágeis, doentes, quietinhos em nosso canto, recebendo atenção, sendo cuidados, esperando, esperando, esperando... E não importa a vida que tivemos nem as lembranças que iremos deixar. Lembranças não são vida. Lembranças não somos nós. Lembranças acabam quando deixam de lembrar.
Kika, os humanos têm uma mania muito idiota de considerar a vida uma benção. Mas não é não. Não tenha medo de assumir essa verdade. Vida é um fardo, é uma quimera, é um troço que a gente carrega e não sabe nem por que cuida tanto para não deixar cair. A gente sente um desespero pela vida, mas a vida acaba, Kika. E acabamos junto com ela sem nem sabermos o que éramos. Não é para ter muita raiva?
Não tem sentido. Simplesmente não tem sentido. E o que serve de consolo nesta hora, não para ti, eu sei, mas para mim, é saber que tu nunca terás tido a menor consciência de tudo isso. E agora cuidaremos de ti até o finalzinho, minha linda. E desta vez não é por mania. É por amor.
Tu sempre acompanhaste as minhas tristezas, tu sempre foste a minha companheirinha, o meu colinho silencioso na hora de chorar. Desculpa se hoje eu não consigo parar de chorar.
É que eu não queria te perder.
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não se nasce mulher, torna-se mulher [simone de beauvoir]
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMas as marquinhas dela estão por toda casa. Cada cantinho traz uma lembrança.. hoje na hora da janta lembramos do "rejunte" do azulejo que ela vivia raspando te lembra? Agora tá ali, um monte de buraquinhos raspados na parede da cozinha bem ali em baixo.
ResponderExcluirDemora pra nos acostumarmos sem a companhia daquela baixinha...
Eu tive meu poodle, o Tribilin. Foi minha primeira verdadeira perda... Estou contigo e nao abro. Mas fique contente por um unico motivo, se bastar: Voce fez a vida dela. Ela foi feliz, nao so TE fez feliz, por sua causa.
ResponderExcluirBeijos
RF