vou lhe contar como foi, já que
todas as noites você vem me perguntar e eu não sei por quanto tempo ainda vou
conseguir lidar com isso. Eu abri a porta e havia todas aquelas malas e sacolas
e coisas. Ela trazia nos braços o velho macaco de pelúcia, e aí você pode
imaginar o tom desesperado da cena. Sim, ele a trouxe; ajudou-a a carregar
tudo, colocou tudo no elevador, subiu, entrou aqui dentro da nossa casa e
largou tudo na cozinha: ele literalmente a devolveu para mim. Eu queria ter
quebrado a cara dele ali mesmo, na frente dela, ela teria gostado que eu a
defendesse. Mas eu a abracei. Assim que ele saiu, eu fechei a porta e a
abracei. Eu a peguei de volta para mim. Não a daria nunca mais, eu prometi. Eu
sei que estava sendo ingênuo, mas eu prometi. Pelo menos foi em silêncio,
Marta. Poxa, eu tenho sessenta e seis anos e ela deveria estar tendo um filho
para que valesse a pena eu ser velho.
Foi isso. Ela se separou de nós, ela
se separou dele. Você meio que previu isso uma vez, né? Ela voltou para a nossa
casa, e o dinheiro dela não dá para nada. Pense bem como é, mudar tudo de
repente. Ela teve de voltar (e eu acho que ela voltaria, pelo menos por um
tempo, mesmo que tivesse mais dinheiro), mas eu soube lá mesmo, nós dois
abraçados na cozinha, as coisas ensacadas ao redor, o macaco largado em cima da
mesa, nos olhando, que dali pra frente ela seria dela e de mais ninguém. E eu a
amo tanto agora que cresceu.
Quando ela era pequena, dizia que
queria ser escritora. Você se lembra, é claro. Ela escrevia os livrinhos,
ilustrava-os ela mesma, montava-os, vendia-os para nós. Você sabe onde eles
foram parar? Eu gostaria muito de vê-los mais uma vez, mas eu acho que nunca
mais vou abrir aquelas caixas. Lembro que você lia Branca de Neve para ela
infinitas vezes (ouço a sua voz até hoje... quando eu chegava tarde do
trabalho... quantas vezes eu me senti aquele príncipe que não chegava nunca) e
depois ela ia para o quarto, deitava na cama e recontava toda a história em voz
alta, passando o dedo sobre cada palavra, reinventando-as, e tudo o que ela
dizia, para mim, era tão mais bonito. Ela nem sabia ler, e já escrevia.
Tempos depois eu descobri que todos
os escritores contam essa mesma história sobre a infância. Mas ela é
tão especial para mim.
Ela tinha tanto medo de tudo. Uma vez,
apareceu no nosso quarto, os olhos de choro. Perguntei o que houve, ela apertou os lábios que tremiam. Eu sentei na beira da
cama e a puxei para o meu colo. Ela me disse, num fiapo de voz, “eu estou com
medo de morrer”. Eu a abracei e escondi meu rosto no cabelo dela. Aninhei-a
depois como a um bebê. Eu estava longe dos cinquenta. Ela não passava dos dez.
Eu disse que eu mesmo estava tão longe da morte que nem pensava sobre isso,
imagina ela. Mas eu juro, Marta, que eu queria ter tido coragem para dizer a
verdade, que ela não podia fazer esse tipo de coisa comigo, que eu não passava de um pai.
E agora eu a tenho de novo aninhada
nos meus braços. E eu preciso entender sozinho o que significa ser uma mulher na
idade dela, no tempo dela, com o orgulho dela, que foi devolvida e perdeu o
trabalho, a casa, a estrutura, o conto de fadas inteiro, do era uma vez ao
happy end. Ela mal cabe na cama de solteira dela. Ela não combina mais com os
lençóis da Hello Caty Kitty e, no entanto, eu a espio antes de dormir.
Procuro na penumbra enxergar se os olhos dela estão inchados. Se a barriga dela
cresceu ou é paranoia minha. Como eu pergunto para ela o que ela quer que eu
descubra por mim mesmo? (Agora eu tenho que dar conta sozinho dessa parte
também...) Eu dou uma carona para ela até o psicólogo, eu arrumo uma lâmpada
melhor para a luminária da escrivaninha, porque ela passa os dias e as noites lá,
chorando e escrevendo a dissertação. Eu a flagrei como quando criança,
experimentando um vestido seu, Marta. O zíper não fechou. Eu não quero mentir
de novo para ela toda vez que a gente se senta no sofá para jantar (eu sei que
você não gosta, mas a gente não usa a mesa para mais nada, eu nem arrumei o pé
daquela cadeira) e ela me pergunta se algum dia vai conseguir esquecer tudo o
que perdeu. Se algum dia tudo isso vai parar de doer. Sozinho eu não tenho forças
nem pra mentir, Marta. E a gente fazia isso bem. (eu ri agora)
Eu sei que você ainda se preocupa. Nunca
acaba, então? É simples, e pra você eu posso dizer, porque a gente é meio
cúmplice nisso: ela vai sobreviver, ela nunca vai esquecer. Nunca. Mas eu prefiro
ficar aqui no nosso quarto e te escrever essa carta enquanto ela fica ali na
escrivaninha reescrevendo a vida.
Vicente.
P.S:
Hoje eu cheguei e ela tinha feito aquele seu bolo d’água que eu gostava. Não sei
onde ela achou a receita. Estou comendo um pedaço agora. Ficou bom.
P.S
2: Nada, Marta. Só essa vontade de mais um pouco. Deitar nesta cama me dá uma
puta saudade.
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